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PAISAGEM É ILUSÃO

Texto elaborado pela curadora Juliana Monachesi para a exposição Ilusão realizada em 2014 na D’Concept Escritório de Arte, São Paulo.

Sempre ilusão. Porque este gênero de pintura, estabelecido no século 17 (antes a paisagem figurava nos quadros como ornamentação ou complemento da cena principal retratada), se define como uma representação da natureza – incompleta, codificada, subjetiva e, necessariamente, composta por um amálgama entre o que os olhos veem e o que a mente é capaz de assimilar. Ao longo da história da pintura, diferentes visões da natureza – romântica, classicizante, pitoresca, sublime, impressionista, realista etc. – afirmaram pictoricamente uma postura sobre o mundo ao mesmo tempo em que se posicionavam em relação às obras de arte precedentes sobre o tema.

Veja-se o exemplo que Simon Schama traz em seu livro Paisagem e Memória, em passagem sobre a viagem dos escritores Horace Walpole e Thomas Gray pelos Alpes franceses e italianos no século 18: “Precipícios, montanhas, torrentes, lobos, trovões, Salvator Rosa” é o resumo de Walpole para o que vê. Uma mistura, portanto, de descrição com interpretação. Salvator Rosa era um artista milanês protoromântico, conhecido pelas paisagens de alto teor dramático. E é por um imaginário modelado pelas representações do artista barroco que Walpole descreve a sua experiência da paisagem dos Alpes.

Temos, até aqui, algumas lições para reter. A paisagem de diferentes momentos da história corresponde à interpretação da natureza que se adotava no período. Esta interpretação decorre da consciência científica de cada época, assim como da consciência estética. E, portanto, a história das representações de natureza ensina a olhar a paisagem. Este jogo dinâmico entre realidade (apreensão direta da natureza pelos sentidos) e ilusão (ou representação) evidencia que a separação entre uma coisa e outra é muito mais sutil do que julga o senso comum.

Caso não conhecesse a versão terrível de Salvator Rosa para a natureza inexplorada dos Alpes, Horace Walpole não a teria vivenciado como um cenário de horror. Da mesma forma, se não nos tivéssemos habituado às vistas aéreas da paisagem urbana ou rural registrada ao longo da história da fotografia, talvez não fossemos capazes de decodificar a vista que o Google Earth nos oferece da superfície terrestre na tela do computador. Representação e apreensão se contaminam mutuamente.

As pinturas de Ana Michaelis se valem desta característica paradoxal da história do olhar. Suas paisagens inventadas carregam um repertório de vistas da natureza, assim como de experiência de pinturas de paisagem de inúmeros artistas. Ana menciona Friedrich, Constable, Corot, os românticos alemães em geral e os franceses de fins do século 19 que utilizavam a técnica do repoussoir. “A natureza é inumana; ela está sempre nos envolvendo, o tempo todo, mas precisamos fragmentá-la para conseguir representar um recorte dela”, reflete a artista. “Para mim, a paisagem funciona como um instrumento para chegar ao que eu desejo, que é o estabelecimento de uma distância.”

As vistas de florestas esbranquiçadas, quase desaparecendo, estão na trajetória de Ana pelo menos desde 2002, quando realizou uma exposição individual predominantemente de paisagens, já com essas características. Apesar de aparentarem ser construídas com diferentes tons de branco, as pinturas, na verdade, começam só com as áreas pretas, que então passam a receber sucessivas camadas de branco. O cinza azulado típico de suas telas vem da carga de azul contida no preto. Esta sombra azulada confere a profundidade distante que situa a paisagem entre uma névoa próxima e uma possível montanha nevada muito longínqua.

Em sua exposição na d_concept, Ana Michaelis leva às últimas consequências um projeto que já estava anunciado na obra que apresentou na mostra Homens Trabalhando, em 2007, coletiva que ocorreu em uma obra em construção na Vila Madalena. Ali, logo na entrada do terreno, uma caixa de madeira de grandes dimensões continha um pequeno visor, que podia ser “acessado” subindo-se por uma escada encostada à caixa. Deste ponto de vista único e privilegiado, o visitante experimentava uma imersão num espaço branco, que “guardava”, na posição oposta à do visor retangular, uma pequena pintura de paisagem.

Na presente individual, a artista criou em escala humana uma paisagem que recobre 3 paredes de uma sala, propiciando a imersão que na obra de 2007 era apenas sugerida. Adentrando a paisagem, todos os seus elementos podem ser perscrutados detalhadamente, assim como é possível vivenciar apenas o todo, um conjunto envolvente de vegetação, árvores, montanhas e nevoeiros que transportam a imaginação para um lugar distante. Uma memória, uma sensação, um espaço vivido, apreendido, representado. O título da obra é Ilusão. Quem visitar a instalação talvez venha a se encontrar, no futuro, imerso em uma paisagem real, que descreverá como flutuante, suspensa, enevoada, Ana Michaelis.

Juliana Monachesi,

Outubro, 2014.

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