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TERRITÓRIOS SEM FRONTEIRAS

Texto elaborado por Carlos Camargo para a exposição Territórios sem Fronteiras realizada em 2011 com o grupo Em Branco, no Espaço Contraponto, São Paulo.

Territórios pressupõem fronteiras, se os entendermos como áreas demarcadas, ou, espaços cujas dimensões são definidas em função de seus limites. Ocupam territórios as nações, os estados e as cidades. Ocupam ainda territórios, bairros, casas, quartos, móveis, objetos e, porque não, os corpos. Por vezes, são áreas demarcadas por fronteiras claramente visíveis, senão táteis. Outras vezes, essas demarcações são apenas supostas. Vastas aplicações para um termo que somente se faz existir pelo fato de a ele estar associada a noção de limites. Aos territórios, ainda, equivalem áreas dentro das quais transitam as singularidades que lhes são próprias, como são próprias as expressões plásticas de cada um dos seis artistas que, aqui, expõem seus trabalhos. Entretanto, e entre essas expressões, ao apontarmos para a existência de possíveis territórios sem fronteiras, isso não significa que o conjunto mostrado seja a mera tradução de uma obra única, indivisível, mesmo porque a cada uma delas, suas singularidades se mantêm plenas.

 

Esta ausência de fronteiras sugerida está associada a outra circunstância, passível de ser encontrada no trânsito de informações que ocorre nos espaços abstratos que hoje nos envolvem, pensando-os, agora sim, como um espaço único, enformado virtualmente, onde os saberes e as culturas trafegam livremente, estabelecendo diálogos prováveis e improváveis; onde o homem é capaz de estabelecer vínculos e articulações as mais plurais possíveis, a despeito de suas linguagens e de seus valores distintos e distantes. Porém, se esses territórios sem fronteiras apontam metaforicamente para a ideia de desterritorialização, ao mesmo tempo eles apontam para o seu oposto, para territórios demarcados, por refletirem o convívio de um grupo formado por artistas que, se sabem atuar em conjunto, também sabem ser independentes em suas ações. Neste espaço ocupado agora por eles, se as matérias e as linguagens de seus trabalhos se aproximam, simultaneamente, todas elas sabem ser distantes.

Carlos Camargo, 
Setembro de 2011.

Texto elaborado por Carlos Camargo para a exposição EM ALGUM LUGAR realizada em abril de 2006 na Galeria ART LOUNGE em Lisboa, Portugal.

SOB OS NOMES, OS LUGARES

Uma série de paisagens se impõe diante de nós. São mares recortados por montanhas, cujos traços formam canais, enseadas e estreitos. Por vezes, esses mesmos mares se fazem abertos, imponentes, fundindo-se ao céu. Impossível negar tais existências. Todas elas estão ali, diante de nós. Mas não. Não estamos nos referindo a essas paisagens construídas por Ana Michaelis. Estamos nos referindo àquelas anteriores, primeiras, que invariavelmente invadem nossas retinas e sobre elas se perpetuam. Paisagens perenes; paisagens amplas, a descortinar cordilheiras, planícies, vales e águas. Concretas existências. Duras e implacáveis. Diante dessas paisagens, então, questionamos: como é possível nos certificarmos de suas insolúveis presenças? Apenas olhando? Fotografando? Desenhando? Pintando? Talvez, mas, antes, outras referências são necessárias, são exigidas: os nomes. Canais, enseadas e estreitos. Mas os nomes não são os lugares. São apenas nomes. Palavras.

 

E as paisagens, onde ficam? Estão ali, sob essas mesmas palavras e, estas, por também existirem, terminam por ganhar novos e paradoxais contornos quando percebemos, em suas potências, a capacidade de traduzir espaços muito maiores do que aqueles expostos e impostos: os espaços interiores, os quais, por serem infinitos, alcançam mares e montanhas indizíveis. Criações, não raro, presentes nos livres caminhos traçados pelos pincéis. São paisagens particulares e, elas, não retratam simplesmente aquilo que a nós se impõem porque, na verdade, retratam aquilo que desejamos que sejam. 
São essas paisagens que, agora podemos dizer, Ana Michaelis nos apresenta.


As pinturas dessas paisagens, com seus mares e suas montanhas, podem ser pensadas como objetos que substituem as paisagens em si. Trata-se, em seu conjunto, de representações da natureza que procuram, a seu modo, tanger ou dominar a própria natureza, em seu estado bruto. Essas pinturas, por não darem conta da imensidão que se lhes apresenta, orientam a artista a se desdobrar em intermináveis exercícios, investigando possibilidades as mais diversas. Ela constrói, reconstrói, transforma, desfaz e refaz. Dilui aquilo que vê. Intensifica. Recorta. Por fim, revela o que interessa ao seu olhar, desejando que esta revelação flagrada seja lida não apenas por ela, mas, em ato contínuo, pelos olhares dos outros. As possibilidades de tais representações da natureza terminam, então, por se configurarem como fragmentos esparsos de um imensurável universo. E, já sabemos não serem elas, meros registros factuais. O que percebemos nas obras de Ana Michaelis, é uma deliberada intenção de construir um ‘outro mundo’, extraído de um ‘mundo real’. 


Em todas as obras mostradas, se impõe a presença de uma paisagem, envolta não se sabe, se por uma bruma, por um sonho ou por uma memória desvanecida. Suave. Tênue. Mas, nem por isso efêmera. É perene e, por assim ser, implacável. Inflexível. A elas, Ana Michaelis elabora contextos, concedendo nomes, como Acima de tudo, Do outro lado ou Miralago. É para isso, então, que servem os nomes? Simplesmente para nos remeter às concretas existências? Pode ser. Sim, talvez possa ser para isso que sirvam os nomes, mas, e os lugares evocados? E os espaços interiores? Os nomes não nos remetem a eles também? Sim, e é por isso que as telas que ora vemos não se restringem a simplesmente descrever um lugar. Sugerem outras circunstâncias, muito além dos nomes que parecem lhes dar existência. 


Mas algo ainda ocorre com a maior parte dessas pinturas: em cada uma delas, entre as inúmeras montanhas retratadas, percebemos que somente uma foi selecionada para ser recoberta por um verde profundo. Um verde intenso, cuja tonalidade tem o poder de transformar esses elementos em ‘ilhas’. Porém, tais ‘ilhas’, não cumprem aqui o papel que a elas sempre soubemos creditar, aquele aprendido nos livros escolares porque, essas ‘ilhas’, não são simples acidentes geográficos. Justamente ao contrário, trata-se de uma geografia incidental, construída para existir num mundo imaginário. São ‘ilhas’ anônimas que navegam, flutuam, percorrendo uma dimensão intangível da natureza. Um espaço interior. E as telas de Ana Michaelis exploram exaustivamente esse navegar. Mas, nem por isso, ele se esgota, porque, os caminhos são infinitos, como são todos aqueles instituídos no campo das representações. Quantas montanhas ainda há por vir? Quantos mares ainda há por encontrar? Quantos canais, quantas enseadas, quantos estreitos? 
É àquela imobilidade, então, presente no fundo enevoado e já descrito, que se contrapõem os elementos móveis: as montanhas. São para estes elementos soltos, eleitos pela artista, que o nosso olhar se desvia, se concentra. E eles, por agora e por ora existirem, também aspiram um vir a ser. São eles, na verdade, que nos fazem enxergar muito mais do que aquilo que os nomes querem dizer. Já vimos ser o nome uma espécie de baliza para a compreensão de um contexto. Mas agora não. Sobre os fundos que comportam aquelas sólidas paisagens, trafegam as montanhas, sopradas pelo vento, buscando, em suas anônimas condições, os saberes; procurando, por também serem lugares, os nomes que ainda não vieram e sobre elas recairão.


Poderíamos pensar que estão apenas no olhar de Ana Michaelis, essas trajetórias silenciosas da natureza, porque foram por ela concebidas. Mas não. Elas estão em todos nós. Suas pinturas só nos convidam a embarcar juntos nessas viagens.

Carlos Camargo, 
Março de 2006.

Carlos Camargo - Sob os nomes, os lugares
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