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ÁGUA - PAISAGEM ALTERADA

Texto elaborado pela curadora Maria Alice Milliet  para a exposição Água, Paisagem Alterada realizada em 2016 no Centro Brasileiro e Britanico , São Paulo.

Os que moram nas grandes cidades se esquecem da natureza. Não contemplam o céu, ignoram tudo sobre a vida das plantas e do clima, sabem apenas o que a previsão do tempo informa. A paisagem que conhecem é de cimento, de ferro e de asfalto. Em São Paulo, desapareceram as várzeas alagadas, os capões de mata, a garoa. Hoje, dos campos de Piratininga não resta nem a lembrança.

Nas cidades, qualquer manifestação da natureza é tratada como catástrofe. Em 2015, a seca levou a população da capital paulista a recordar a importância da água para sua sobrevivência. A conversa retrocedeu a tempos imemoriais: falava-se da chuva e da falta que ela faz. Assim, a água voltou a ser uma preocupação primordial. Os índices pluviométricos e os níveis das represas ocuparam os noticiários. Depois de décadas de ocupação desordenada, os paulistanos começaram a atentar para a relação existente entre a água que sai das torneiras e as agressões ao meio ambiente.

 

A contribuição dos artistas a essa tomada de consciência corre em paralelo aos fóruns que apontam a necessidade de preservação dos recursos naturais. É um jeito diferente de se ligar no que acontece, de apreender a realidade. Qual a cor do pó que levanta da terra seca? Como fica o céu quando a tempestade se aproxima? O artista traduz em imagens essas impressões.

Atento ao mundo a seu redor, ele observa as ruas molhadas, o lodo, a lama, a espuma, a água parada. Percebe a atmosfera pesada de chuva, as gotas que escorrem pela vegetação, a poça escura a brilhar como um olho cheio de lágrimas. Sua intenção não é registrar o que vê e sim, nos sensibilizar por meio de uma visão poética da paisagem.

Maria Alice Milliet

São Paulo, 2016.

Ilhas Flutuantes - Texto

ILHAS FLUTUANTES, DEVANEIO

Texto elaborado pela curadora Maria Alice Milliet, 2017, São Paulo.

Ao abdicar da cor – a maior sedução da pintura – Ana Michaelis enfatiza a ambiguidade da imagem, sua capacidade de despertar sensações e provocar sentimentos contraditórios. Trabalha com a vastidão do branco tocado pelo negro que depois encobre parcialmente com finas camadas de cinza. Aos poucos faz surgir paisagens de sonho em que ilhas parecem flutuar sobre o mar feito espelho: são vistas do litoral, algumas pintadas diretamente sobre a parede, à maneira dos antigos panoramas.

Com sua pintura, Ana não busca a representação do real, cria uma ficção. Sua inspiração vem tanto de fragmentos de quadros históricos como de imagens obtidas na internet. Para sua surpresa, essa livre combinação de imagens não impede que muitos julguem identificar esses lugares, associando-os com frequência a memórias da infância. Entretanto, nem todos gozam da alegria desse reencontro. O perfil sinuoso do relevo litorâneo, os cantos de praias, as enseadas e a bruma marítima, tudo aquilo que se apresenta tão familiar para alguns é, para outros, motivo de estranhamento.

 

O certo é que diante dessas paisagens imaginárias ninguém fica indiferente. A visão das ilhas silhuetadas contra o céu e seu reflexo nas águas paradas faz o observador parar e, por um momento, participar da secreta comunhão do homem com a natureza, tal como queria o romantismo. Aqui a pintura de Michaelis se aproxima da estética do sublime (do latim sublimis, o que se eleva, se sustenta no ar) que trata com reverência a paisagem natural cuja grandeza e mistério provoca no ser humano a sensação de solidão e pequenez e até certo temor. A esses sentimentos universais se mescla o imaginário de cada um, com seus desejos e medos, desde o impulso de evasão até o temor do desconhecido.

 

A complexidade dessa pintura reside na sua capacidade evocativa. As imagens duplicadas ao longo da linha do horizonte resultam em manchas simétricas cuja configuração faz lembrar o teste de Rorschach, recurso muito usado por psicanalistas em meados do século XX para estimular a livre associação de ideias e assim revelar o inconsciente. O teste funciona assim: borrões produzidos por uma gota de tinta pressionada por uma folha de papel dobrada ao meio são mostrados ao paciente para que ele descreva as impressões que aquelas figuras suscitam. É sabido que uma simples imagem pode provocar uma avalanche de confidências. É essa potência do signo que a poética de Ana Michaelis explora. Com delicadeza e precisão, ela cria paisagens que tocam nosso inconsciente. Basta a vista dessas ilhas para nos fazer navegar por mares desconhecidos.

 

 

Maria Alice Milliet

São Paulo, Maio de 2017.

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